sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Todos os Niemeyers são mortais. Um conto sobre o Mestre



Publiquei este conto na véspera da morte de Oscar Niemeyer. Sei que ele tinha bom humor, mas nunca saberei o que ele pensaria dessas meia-verdades e mentiras

Oscar Niemeyer, arquiteto brasileiro, um dos mais importantes arquitetos do mundo, sai do hospital, depois de seis semanas de internação. Nesta manhã, ele voltou a sua casa, onde comemora o seu 105º aniversário.

Sentado no sofá, Oscar Niemeyer olhou a repórter que falava dele na TV. Pensou: “O melhor de estar vivo é pensar em todo mundo esperando minha morte…”. Sua esposa e secretária, Vera, pegou sua mão: “Oscar, você é eterno”. Mas olhando o marido com os olhos fechados, chamou: “Oscar! Oscar?!”. Que imenso alívio ao ouvi-lo: “Calma, Vera, ainda estou vivo…”.

No canto da sala, tantos presentes pelos 105 anos. “Querido, quer abrir os pacotes? Se você estiver cansado, deixamos para amanhã”, disse Vera. Fazendo um esforço sobre-humano, Niemeyer ergueu o corpo: “Hoje!…Abro hoje!..Não sei por que, mas minha confiança no amanhã anda em baixa”, brincou. Vera arrastou a mesa com todos os presentes para perto do sofá. “Vou na cozinha fazer um café e preparar algo para o pessoal que vem te visitar. Qualquer coisa me chama!”. E, sozinho, Niemeyer abriu um a um todos os embrulhos.

O último foi uma pequenina caixa com um bilhete: “Para Oscar, o meu amigo mais irônico e divertido. De José Ramos”. Dentro, havia uma nota de 100 mil Cruzeiros, de 1985, com o rosto de Juscelino Kubitschek. E, sobre ela, estava escrito uma frase a caneta. Niemeyer forçou as vistas para ver e entender o que estava escrito (porque a caligrafia não ajudava…): “Não olhe atrás dessa nota”. Sem pensar muito, quase de forma automática, Niemeyer virou a nota. “A curiosidade matou o gato”. Niemeyer riu. Gostava do senso de humor do seu amigo José Ramos, gaúcho especialista em numismática. José Ramos tinha uma coleção muito rica de notas antigas e procurava especificamente aquelas marcadas, em que as pessoas haviam escrito algo. Dizia sempre a Niemeyer: “Quando você morrer, a primeira coisa que vou fazer é pedir a sua família que me venda aquela sua nota que está na parede”. Falava dos 20 mil réis, de 1925, onde se lia: “Oscar, você morrerá…”. Mas Niemeyer respondia sempre: “Você morrerá antes de mim, Ramos”. Sorrindo, Niemeyer olhou a nota emoldurada, pendurada na parede da sala. Ela carregava uma história que ele nunca havia contado para ninguém. Fechou os olhos.

Seu pensamento voou até 1927. E, de repente, ele se viu novamente em frente à loira Ilenia, que perguntava:

_ Oscar, e desta…você gosta?

_Sim, é linda. Parece os teus olhos verdes.

Ilenia pegava as folhas de árvore na calçada e lhe mostrava. Niemeyer avaliava a forma, a textura… Naquele tempo, ainda não era um arquiteto, mas desenhava bem e gostava de arte.

_ E esta?

_ Esta não. Não gosto da folha de Plátano. É muito…

_Muito canadense?…

_ Talvez, respondeu sorrindo, mas também muito…sem curvas. Olha essa outra aqui, acho que é de bétula. É muito mais convidativa, atraente…parece o seu corpo.

O pôr do Sol já havia terminado quando eles chegaram ao bar.

_Amanhã, vou embora, Oscar. Você vem se despedir no porto?

_ Fica, Ilenia.

_Não posso. Minha família me espera na Itália. Devo partir…

_ Se você ficasse, eu te amaria por toda a minha vida…

_Sério? E quanto tempo pensa em viver, Oscar?

_Para sempre.

Falaram e beberam bastante até a madrugada.

_ Fico tão bem quando estou com você, Ilenia. Tenho medo de nunca mais te ver.

Bêbado, meio torto, Niemeyer pegou uma nota de 20 mil réis do bolso e colocou sobre a mesa.

_É como essa nota. Ela era minha, mas eu deixo ela aqui, digo tchau e nunca mais encontro com ela de novo.

_ Talvez encontre. Oscar, presta atenção: a única certeza é a morte. E, dizendo isso, Ilenia pediu uma caneta tinteiro ao garçom e escreveu sobre a nota: “Oscar, você morrerá…”.

Oscar riu muito. Depois, chorou. E depois disse: “Tô bêbado. E com vontade de mijar”. Quando voltou, Ilenia estava pronta para ir embora. Niemeyer perguntou: “E a nota?”. Mas o garçom já havia levado. “Que pena, queria ficar com ela de recordação”. E Ilenia respondeu: “Quem sabe você a reencontre, senhor imortal…Afinal, você terá tempo para procura-la. Mas se a reencontrar, olhe bem e se lembre: eu te avisei”.

Na manhã seguinte, Oscar perdeu a hora e não foi ao porto. O navio de Ilenia partiu. E toda aquela história permaneceu esquecida. Até 1942.

A igreja da Pampulha estava quase pronta, em Belo Horizonte. Niemeyer e Juscelino, então prefeito da cidade, tinham uma reunião e o arquiteto estava atrasadíssimo. Pegou um taxi com seu assistente e quando pagou, recebeu de troco uma nota muito, muito velha, de 20 mil réis. “Desculpe, senhor, não tenho outra…”. Niemeyer pegou a nota, sentiu o coração explodir. “Oscar, você morrerá…”. “Não pode ser…Ilenia…”, pensou, mas como precisava correr ao encontro de Juscelino só teve tempo de entregá-la ao seu assistente e dizer: “Emoldure essa nota o mais rápido possível e coloque na minha bagagem”. O assistente obedeceu.

_Oscar! Oscar!, era Vera que entrava na sala e encontrando o seu marido com os olhos fechados, se alarmou.

_Calma, Vera, ainda estou vivo…- Niemeyer abriu os olhos e viu sua mulher com uma bandeja. Trazia um suco, que ele bebeu bem devagar.

_ E para comer, querido?

_Arroz, feijão, picadinho de carne e ovo frito.

_ Posso trocar por…sopa de cenoura?

_ Vera, sopa de cenoura não evitará o inevitável… Eu vou morrer.

_ Não. Não vai morrer, disse ela, saindo.

Niemeyer pensou: “Morro…só não sei de que…”. Recordou-se da nota de 100 mil Cruzeiros, que lhe deu José Ramos. “A curiosidade matou o gato”. Suspirou. Pensou novamente em Ilenia, fechou os olhos e estava deixando o corpo escorregar no sofá, relaxado. A voz de Ilenia vinha clara, sonora. “Senhor imortal, eu te avisei…”. De um salto, abriu os olhos. Sentiu uma vertigem. Sua mente ferveu, tudo pareceu caótico, a sala começou a girar. Sentiu falta de ar. Começou a levantar-se, apoiava-se nos braços, precisava se erguer. Não piscava, não respirava. Caminhou até a gaveta e pegou o seu estilete mais afiado. Preparou o estilete. “Como? Como?”. Arrancou a nota emoldurada da parede. Com o estilete e com as mãos que tremiam, tirou a moldura. “Como nunca tinha pensado em olhar atrás da nota? Como?!!!” As palavras dançavam na sua cabeça como abelhas ruidosas. Imortal…Te avisei…Morrerá… Niemeyer sentou-se novamente. Liberta, a nota estava na sua mão. “Oscar, você morrerá…”. Muito devagar, Niemeyer virou a nota. A mesma tinta de caneta, a mesma caligrafia. “Oscar, você morrerá…” na frente. E no verso:

“…de saudades”.

_ Oscar?! Oscar?! Oscaaaaar….

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Para Lívia Pedreira, que me fez descobrir a arquitetura e que me sugeriu a leitura de Todos os Homens são Mortais, de Simone de Beauvoir

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Fonte: Márcia Carini é editora do site Casa.com.br e tem um blog de contos: http://testitaliani.wordpress.com

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